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Histórias

NA CASA DE MEU PAI HÁ MUITAS MORADAS DE ALEGRIA!

NA CASA DE MEU PAI HÁ MUITAS MORADAS DE ALEGRIA!

(papai antes de entrar na sala de cirurgia hoje de manhã – dia 07/08/07)

 

[ASSIM FOI MEU 1o DIA AQUI NESTA ESTAÇÃO DE INVERNO DA VIDA]

 

Quando cheguei aqui ontem à noite, ele já estava dormindo.

 

Mamãe me disse para ir vê-lo, no quarto.

 

Dormia quieto.

 

Fiquei ali, parado ao lado de sua cama, e fui tomado por milhares de memórias.

 

Ele jovem, fazendo-me sentir o mais bem-aventurado dos filhos deste mundo.

 

Ele intenso, empresário, advogado astucioso e culto.

 

Ele falido, quebrado, traído, amargurado, chocado pela realidade.

 

Ele encontrando com Ele e se tornando como uma criança do reino.

 

Ele pastor porque era pastor.

 

Ele amante de seres humanos, tomado pelo Evangelho como nunca antes ou depois eu jamais vi.

 

Ele de joelhos por mim, anos...

 

Ele me ensinado a ler a Palavra, a jejuar, a enfrentar demônios, e a crer na Graça.

 

Ele como homem de dores (e quantas têm sido as suas dores!) — na alma, no corpo, nos choques de amar sempre e nunca desistir.

 

Ele ficando velho.

 

Ele ficando cego.

 

Ele quase morrendo..., mas eis que sempre vivendo.

 

Ele alquebrado, porém nunca fraco.

 

Ele sempre fazendo, construindo, e, sobretudo, sempre ouvindo gente e ajudando a todos.

 

Ele não sendo honrado como a honra da gratidão mandaria por parte de muitos que comeram em suas mãos e hoje o tratam como se ele não fosse ele.

 

Ele, porém, sempre sereno. Sempre paciente. Sempre vendo o melhor em todos. Sempre cobrindo pecados com misericórdia.

 

Ele nunca julgando, carregando pavor de cometer uma blasfêmia contra a alma de alguém.

 

Ele transcendido...

 

Ele arrebatado aos céus.

 

Por último lembrei-me do que ele me disse quando se anunciou a operação de hoje:

 

“Meu filho! Seu paizinho tem três opções: fazer a cirurgia e não sobreviver e ir estar com o Senhor. Fazer a cirurgia, sobreviver de modo imediato, mas morrer das complicações e ir estar com o Senhor. Ou então, meu filho, seu paizinho pode passar bem por tudo, ganhar mais saúde, viver mais tempo aqui até ir morar com o Senhor. São três opções que me levam ao mesmo desfecho: morar com o Senhor. Não são ótimos os meus prognósticos?”

 

Vim para meu quarto (na casa de papai e mamãe) e chorei sobre muitas boas e significativas outras lembranças.

 

Acordei cedo porque ele mandou me acordar aí pelas 6 horas da manhã. Não queria chegar atrasado para a cirurgia.

 

Há uma semana atrás eu tentei demove-lo de fazer uma cirurgia de quatro desdobramentos: tirar a próstata, operar a bexiga toda deformada pela próstata imensamente crescida, fazer uma intervenção no rim direito (um cisto não identificado), e cortar a base inferior do rim esquerdo, comprometido por algo que pode [ria] ter natureza cancerígena. Preocupava-me também a “sobrevivência” do cérebro dele, depois de tantas cirurgias gerais que fez no curso da vida, e, agora, mais esta, com quase 83 anos.

 

“Meu filho! Quando você esteve aqui há dois meses, me achou bem e forte?”

 

“Sim, pai. Você estava ótimo!”

 

“Pois bem, é assim que eu continuo: ótimo, forte e tranqüilo. Pode haver condição melhor para operar? Fique tranqüilo meu filho!”

 

Hoje cedo fiz o que em muitas outras vezes também fiz: preparei-o para a cirurgia. Ele sempre bem humorado e confiante. Tirei fotos dele e ele brincou e posou. Viu minhas manas Suely e Ana derramando lágrimas e disse: “Ânimo! Confiança! Está tudo bem!”.

 

Os médicos e enfermeiras sempre ficam impactados e em geral choram quando ele deixa o hospital — é um conforto aqui, outro ali; uma oração com um, um conselho a outro; e ele vai salgando tudo... Assim, ele acaba deixando médicos e para-médicos com saudades.

 

“Vai durar umas seis horas”, nos disse o anestesista.

 

Durou apenas uma hora e meia.

 

Logo o médico estava saindo e mostrando tudo o que retirara de papai, incluindo a próstata imensa; porém não sem deixar minhas duas manas, Suely e Ana, quase à beira de um ataque de nervos:

 

“Vocês prometem que não vão desmaiar?” — indagou das duas.

 

“Prometemos” — disseram em uníssono, assombradas.

 

“O que será meu Deus?” — indagavam.

 

“Olhem aqui a próstata dele e as outras coisas. Lindo não é? Foi uma maravilha!”

 

Foi só então que as duas descansaram...

 

“Não houve quase perda de sangue e ele está muito bem” — disse o doutor Marcel.

 

Uma hora depois, já “fechado”, ele saiu da sala de cirurgia. “Pode falar com ele”, me disse o anestesista.

 

“Paizinho! Deu tudo certo! Foi rápido. Você está ótimo, pai!” — disse segurando uma das mãos dele.

 

“Estou com sede!”

 

Baixei até um dos ouvidos dele e disse que ele agüentasse firme, pois, quando fosse possível, os médicos dariam qualquer coisa para aliviar a sede dele; mas o lembrei que o pós-operatório é assim mesmo.

 

Seu pai está lúcido, meu filho. Estou totalmente consciente. Posso até citar Romanos!” — disse ele, enquanto esperávamos o elevador a fim de que ele fosse para a UTI.

 

Os médicos e enfermeiras não entediam nada. Eu e minhas manas ríamos dele. Ah! Nós já vimos coisas incríveis dele. Ele é pura surpresa sempre.

 

“Eu sei paizinho, eu sei. Mas não fale; que é para não entrar ar e você ficar com gases” — disse cumprindo meu dever.

 

Pois o fim da Lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê” —falou ele com a boca pequena, seca, sedenta, colada lábio a lábio; porém, suficientemente aberta para ele declarar o que nele é sinal da consciência mais intrínseca: o Evangelho.

 

Agora no fim da tarde levei mamãe até ele na UTI. Ela lhe fez todos os carinhos e expressou a imorredoura admiração, alegria e prazer que ela tem nele.

 

Meu velho de Deus, você é valente, cheio de fibra, tenho orgulho de você.”

 

Ele sorriu com toda gentileza. Depois ela disse: “Vamos orar meu velho, vamos agradecer ao Senhor!”.

 

E começou a orar.

 

Eu seguia tudo de olhos abertos, preocupado com ele. De súbito comecei a ouvir aqueles “améns”, “aleluias”; ou aquele forte “É verdade Senhor!”.

 

Mamãe parou e ele continuava glorificando a Deus.

 

“Pai glorifique na mente; assim você vai se encher de gases”.

 

Ele disse que sim; e parou.

 

Lá fora, na garagem da casa deles, agora, enquanto escrevo, está acontecendo a reunião de oração que nunca parou de acontecer aqui desde 1971. Com morte, com nascimento, com alegrias ou profundas tristezas, comigo exaltado ou humilhado, com minhas manas bem ou nem tanto, com os netos vivos ou até morrendo — a reunião nunca parou nem um dia.

 

Sim! Nem na semana em que eles sepultaram meu mano, Luis, de 19 anos, e que faleceu num acidente de carro no dia 2 de novembro de 1976. Nem naquela semana a reunião fez silencio nos céus.        

 

Nós, filhos e netos dele, e minha mãe, mulher de fibra e que se fez mulher para ele no curso de mais de 54 anos, agradecemos ao Senhor por o haver mantido mais tempo conosco, por nossa causa (não dele); e apenas para que ele veja ainda algumas coisas que o coração dele deseja ver como resposta às suas orações.

 

Também quero aqui agradecer a todos os que oraram por ele, aqui na cidade, bem como no Brasil e no mundo inteiro.

 

Cada dia mais aquele homenzinho se agiganta diante de mim; enche-me de alegria em Deus; e me mostra todo dia o que é viver em Cristo; o que é amar de verdade; e o que é viver a paz que excede a todo entendimento.

 

A Glória de Deus repousa sobre ele. Morte e vida deixaram de ser importantes. Ele mostra para todos aqueles que vêem a vidinha dele, que de fato se está diante de um homem que come a Graça e se satisfaz na semelhança de Deus todos os dias.

 

A maior benção [humana] que tive na Terra foi ter nascido dele, e ter com ele aprendido os caminhos do homem e os caminhos de Deus.

 

 

Nele, grato e grato,

 

 

 

Caio

 

07/08/07

Manaus

Am

 

 

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