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Opinião

MARCINHO VP, O ABUSADO: UMA HISTÓRIA SOBRE DROGAS

MARCINHO VP, O ABUSADO: UMA HISTÓRIA SOBRE DROGAS

Acabei de ler o livro “Abusado”, de Caco Barcelos. O livro é chocante, mesmo para quem conhece boa parte dos personagens nele apresentados minuciosamente por Caco. O próprio Caco é pessoa de meu conhecimento. Instalou-se na Fábrica de Esperança alguns dias, na época em que o Exército estava nas ruas do Rio, na chamada Operação Rio, no início da década de 90. Conversamos muito sobre muitas coisas, inclusive sobre minha fé em Jesus. Caco é gente boa e íntegra. É um homem, como hoje em dia é difícil encontrar, especialmente entre jornalistas. Alguns personagens do livro me foram apresentados pelo “missionário Kevin Vargas”, apelido que Caco dá ao meu amigo, que trabalhou mais de uma década no Morro Dona Marta e também na Vinde e na Fábrica de Esperança. Ano passado voltei ao morro umas três vezes para pregar. Mas foi durante a década de 90 que estive inúmeras vezes por lá. Preguei no sopé do morro, na quadra, em casas, no Cruzeiro, no pico, nas vielas, etc... Foi lá que conheci Marcinho VP—no livro chamado de “Juliano”, pois, enquanto Caco escrevia o livro, Marcinho ainda estava vivo! Marcinho foi morto cerca de dois meses atrás. Os detalhes de sua morte foram divulgados pelos jornais de todo o Brasil. Raimundinho, o Exterminador, conheci lá também. Conto a história de meus encontros com ambos no livro “Confissões de Um Pastor”. Foi também no Dona Marta que encontrei o Nem Maluco e disse a ele, na presença de Raimundinho, que ele morreria logo... Vira essa boca pra lá, pastor—disse-me ele. Mas o fato é que dias depois estava morto. Bateram bola e fizeram pé-pé com a cabeça dele no “Complexo do Alemão”, naquele tempo controlado por Uê. Experiências semelhantes eu tive com Flávio Negão, de Vigário Geral—“Kevin Vargas” estava comigo naquela noite de véspera de Natal na qual disse a ele que fugisse, do contrário, morreria em breve! Um mês depois estava vazado de balas... Zaca, que foi personagem “importante” na história do Dona Marta, eu conheci em Bangu I. Conversei muitas vezes com ele, apesar dele fazer parte da ala dos que não eram “amigos” da maioria dos internos, que pertenciam ao Comando Vermelho. Zaca fazia parte dos “alemão” como os “outros” chamavam os que eram dissidentes. Mas minha liberdade de entrar em cada uma das quatro alas do presídio era total. Sentia-me amado e respeitado por muitos deles; até hoje recebo recados de “saudades” que eles me enviam através de familiares que até hoje ainda me procuram esporadicamente. O livro não me disse nada que eu não soubesse, mas me deu uma perspectiva bem mais organizada das seqüências históricas do Dona Marta; muito melhor do que eu havia conseguido “montar” até hoje. Afinal, nunca estudei o fenômeno, apenas o vi como “visitante”. Fica aqui minha recomendação para que se leia o livro. As razões são as seguintes: 1. Caco Barcelos é, possivelmente, o mais honesto e limpo repórter investigativo que já conheci. Não faz muito tempo falamos ao telefone. Ele hoje mora em Londres e faz cobertura de guerras e situações de conflito para o Jornal Nacional, O Globo Repórter e o Fantástico. Senti carinho e empatia por ele assim que o encontrei. Minha opinião não mudou. 2. “Kevin Vargas” é amigo de mais de 12 anos. Já trabalhou comigo e sempre foi leal em todas as coisas. É homem, antes de tudo. Respeito alguém que seja homem, e que mantenha a lealdade nas horas de conflito e perigo. Kevin é assim. Não nega fogo. Se é amigo, é amigo. Nos últimos meses estivemos outra vez juntos. Recentemente sua esposa—egressa da vida descrita no livro—deu a ele um filho. Hoje ele trabalha na assessoria política de um deputado no Rio. “Kevin” foi um dos maiores incentivadores deste site, sendo um dos responsáveis pela entrada dele no ar. E pela freqüência com a qual recebo e-mails dele através do Fale Comigo, sei o quão assíduo ele é nas visitas ao site. 3. Marcinho VP, o “Juliano” do livro, é o Abusado. Já expressei em lugares diferentes, inclusive na mídia, a impressão que ele me causou durante uma longa conversa que tivemos madrugada a dentro, lá no Dona Marta. Kevin disse que ele queria falar comigo. Eu estava no morro dirigindo uma vigília de oração. À meia-noite, quando todos desceram, ele veio ao meu encontro, e conversamos longamente. Fui para casa com o coração ferido. Vi nele um potencial extraordinário. Possivelmente a mesma coisa que Caco também percebeu nele. O mesmo eu diria de João Sales, o cineasta que acabou tendo que explicar na justiça sua decisão de ajudar Marcinho a sair do crime. Tenho certeza que Luis Eduardo Soares—atual Sub-secretário Nacional de Segurança do Governo Lula—também percebeu a humanidade latente e a inteligência brilhante e faceira de Marcinho. Por isso, João tentou ajudá-lo, enviando dinheiro para o seu sustento fora do Brasil, quando o Abusado decidiu “largar o crime”. E Luis Eduardo foi envolvido como pretexto, pelas autoridades do Estado do Rio em 2001, sob a alegação de que sabia das ações de João Sales e nada teria dito ao Governador. Conheço o Luis Eduardo, e, conquanto ele não seja “crente”, ponho mais fé nele que na autoridade que contra ele se insurgiu. 4. Meu conselho ao Marcinho VP em 1994 foi insistente. Chorei por dentro e externei minhas emoções a ele com toda clareza. Disse-lhe que se quisesse sair dali e começar vida limpa em outro lugar, eu mesmo o ajudaria. “Kevin” testemunhou tudo. 5. O livro também precisa ser lido para que se perceba bem a extensão do banditismo policial no Rio e em todo o Brasil. Simplesmente não há distinção. 6. O que aparece também no livro é o esforço intenso e, na maioria das vezes, inócuo dos missionários cristãos no Dona Marta. Vidas foram salvas pela intercessão de “Kevin”, mas até alguns dos “meninos” do tráfico que eram simpatizantes de Kevin, mesmo carregando Bíblias nas mãos, continuavam seu trabalho de execução de pessoas nos Tribunais do Comando Vermelho. Eu mesmo disse a “Kevin” que saísse dali. Ele trás no corpo as marcas—cicatrizes—daquele tempo em que ali esteve. Até o ano passado “Kevin” ainda residia no lugar. Ajudei-o durante uns três meses até que ele conseguisse seu atual trabalho como assessor do deputado. 7. O livro de Caco nos mostra o ridículo das ações governamentais. E pior: nos mostra aquilo que aqui mesmo, neste site, eu já disse que está em franco processo de desenvolvimento: a real organização do tráfico, que hoje já não é mais “romântico” como o foi nos dias de Escadinha e outros. 8. Tenho dito desde minha conversa madrugada a dentro com Marcinho VP—a quase 10 anos—, que meu temor seria a junção daquele “poder local” com outras forças “de fora”. Naquele tempo eu advertia as autoridades quanto ao fato de que se “eles”—os meninos do tráfico—se “emturmassem” com os traficantes Colombianos, e se também se envolvessem com o terrorismo internacional, o Brasil ficaria sem solução. Bem, hoje já se sabe que depois de Fernandinho Beira-Mar o tráfico deixou de ser romântico—Beira-Mar é o Pablo Escobar do Brasil—, e a guerrilha e o tráfico Sul-Americanos já estão também começando a andar de mãos dadas com o "terrorismo islâmico". Esse sempre foi meu medo. Afinal, as leis do CV são “islâmicas”—refiro-me aos “fanáticos” no Islamismo—na sua execução; e a lógica operacional e ideológica não são diferentes. 9. Quando ouço e vejo as “autoridades” Estaduais e Federais tratarem o assunto, não consigo deixar de ficar revoltado. O discurso deles, para mim, ou revela total ignorância ou o mais absoluto cinismo. Mas a realidade passa muito longe do que falam e prometem... 10. Soluções. Essa é demanda. No entanto, se são humanamente impossíveis, são desumanamente tornadas infinitamente piores as situações que crescem com o descaso. Soluções não são mágicas. Elas demandam vontade e prioridade na aplicação. E tanto o Estado do Rio como o Brasil parecem ainda não ter percebido que estamos a caminho de algo infinitamente pior que os “problemas” que hoje se pretende combater. 11. Se não houver uma intervenção “radical” nas Polícias e ações de choque social e econômico na realidade das crianças e jovens das áreas de miséria e violência do Brasil, ninguém poderá impedir o processo de colombinianização-guerrilheira-traficante-terrorista que nos aguarda em um futuro não tão distante. No fim, sem maniquismo, o bem é bom; e o mal é mau! Isso aqui é apenas um desabafo... Fica, todavia, a recomendação de que se leia Abusado, de Caco Barcelos. Caio Escrito em 9 de setembro de 2003
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