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Opinião

DESCONHECIDOS: um filme sobre a loucura e a paixão

DESCONHECIDOS: um filme sobre a loucura e a paixão



“Desconhecidos” (Perfect Strangers, Nova Zelândia, 2003) é “ESTRANHO”. Resumindo em poucas palavras: é uma história totalmente bizarra de amor e insanidade. Uma garçonete solitária, Melanie (Rachel Blake, que está perfeita no papel), encontra um homem misterioso num bar noturno (interpretado por Sam Neill e creditado apenas como “O Homem”). Ele a convida para ir até sua casa e ela aceita, sem pensar muito já que estava bêbada. O homem a leva até um cais onde está seu barco e convence Melanie a embarcar rumo a sua casa numa ilha. Alcoolizada e exausta, ela adormece e quando acorda eles estão em alto mar e próximos ao destino, onde a cabana rústica do homem fica no meio do mato numa ilha isolada. A princípio sedutor e charmoso, o misterioso homem demonstra depois sinais de ser alguém perturbado, e confessa estar apaixonado pela mulher que trouxe consigo do bar na cidade. Começa então a surgir um clima crescente de tensão entre o casal, numa história de paixão diferente, com direito a assassinato, alucinação e loucura. “Desconhecidos”, dirigido e escrito pela neozelandesa Gaylene Preston, é um filme “diferente”, com uma história pausada, sem ação frenética, sem sangue como cenário, sem violência como regra. É um thriller psicológico e que tem desfecho surpreendente e rico pela natureza das arquiteturas psicológicas que são desenvolvidas. Portanto, é um filme para gente grande, pois, psicologicamente, define a linha tênue que existe entre a insanidade e a paixão; sendo que no caso, por razões distintas, ambas as coisas se mesclam, criando um cenário psicológico interessantíssimo. Ora, o filme me levou a fazer considerações rápidas acerca de paixão e insanidade; entre dependência e co-dependência; visto que evoca reflexões sobre um tipo de sentimento que os gregos chamavam de Amor Pathé e Manía ( Pate, Mania). Estas palavras gregas para designar tais sentimentos são Pathé e Manía. Ovídio escreveu “A arte de amar”, que, de fato, trata da arte de como evitar tornar-se amoroso. Isto porque para os antigos gregos e romanos, estar apaixonado era uma doença a ser evitada a todo custo. Era uma possessão! “A arte de amar” de Ovídio é a arte de evitar cair neste estado de possessão, o que, a meu ver, não só é um exagero, mas também faz mal a alma, em razão de que a total não-paixão também adoece a psique. Traduzimos a palavra Pathé por paixão e ela está na origem da palavra patologia. É interessante verificar que, na tradição grega, algumas formas de amor são formas de possessão, de Manía, como por exemplo: maníaco-depressivo. A paixão faz-nos passar por estados extraordinários, maravilhosos, mas pode ser também um inferno, pelo ciúme que desencadeia. Este amor não é de consumo, não é um amor devorador, mas é um amor de posse, de dependência e também, uma necessidade. Aqui, o amor não é um dom, é uma necessidade, uma solicitação. Às vezes, o que chamamos de amor, não é senão posse, dependência, necessidade. Esta forma de amor, quando encontra uma alma carente, insegura, e sem self, tem o poder da loucura que faz matar e depois congelar o cadáver para continuar a tê-lo por perto. Para este insano, o amor que existe é apenas “projeção” (embora a pessoa não saiba e nem admita isto); a qual, existe em substituição à pessoa real. Sim, quando a paixão ganha tais contornos, já não é mais amor, mas apenas patologia e insanidade. Tais paixões podem gerar tanto sofrimento que pode levar a pessoa a matar. Como diz a voz do povo: “Matou por amor”. Na cultura ocidental, pelo número de canções e de romances tristes que ouvimos e lemos, temos a impressão de que não existe amor feliz. Todas as histórias de amor são, ao mesmo tempo, histórias apaixonadas, possessivas, ciumentas e, freqüentemente, dolorosas. Isto porque as Tragédias Gregas transformaram o amor que “vale a pena” no amor que mata e faz sofrer. Assim, as raízes de nossas patologias afetivas, além de nossas, são também fruto de um movimento bipolar: os mesmos gregos que declararam a paixão uma doença mental, acabaram por só conseguir produzir histórias de amor do mesmo feitio: insanas, assassinas, dolorosas, e profundamente infelizes, em razão da supressão que tentaram fazer de qualquer forma de paixão. É verdade que o estado de paixão faz sempre certas formas de suspensão da observação objetiva e realista da existência. Daí, não raramente, a gente ouvir alguém dizer: “Eu só podia estar louco quando gostei daquela pessoa”. Todavia, fazer da paixão algo que é intrinsecamente insano, produz a insanidade das almas geladas, objetivas, técnicas em suas decisões, e sem a graça das explosões à revelia que o coração precisa conhecer pelo menos uma vez na vida, a fim de manter a sanidade pela via do equilíbrio entre os pólos da alma. Assim, não admitir nunca “nenhuma paixão”, é algo tão patológico quanto viver no estado de “paixão sempre”. Todo amor sadio começa com alguma forma de paixão, mas só se sustenta como amor se o desejo da “posse” der lugar a liberdade na qual ambos podem ser indivíduos, e, assim, crescerem em amor que também doa e entrega. O filme revela essa linha tênue, e mostra como a loucura da paixão tanto é “assassina”, quanto também pode ser “caridosa”; especialmente quando se trata de congelar o objeto da paixão, mesmo que morto, a fim de que a “posse” física não seja perdida. Isto porque não existe paixão sem sentimento de posse; o que, nem sempre pode ser relacionado a amor. A paixão sempre pretende fazer do objeto do amor algo congelado, que perca a vida, e que exista apenas para atender às necessidades e carências do ser insano pelo desejo da posse, o qual, nada mais é que insegurança, e, além de tudo, incapacidade de amar a si mesmo. Uma paixão será tão mais devastadora (quando é insana), quanto mais vazio de si for o apaixonado. Nesse caso, como o filme mostra, até um defunto serve aos propósitos da paixão que virou, de fato, uma patologia. Para quem gosta das coisas da alma, vale a pena ver! Caio
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